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Implante coclear: como voltar a ouvir

Composto por duas partes, o implante coclear permite que o som ultrapasse as zonas do ouvido que já não estão a funcionar, levando-o diretamente ao nervo auditivo.

Fernando Mendes cresceu a achar que era diferente dos outros. Na escola, dava muitos erros, tinha problemas em concentrar-se. “Reprovei muitos anos. Durante muito tempo, achei que era falta de inteligência”. Aos 40, descobriu que se tratava, afinal, de um problema de surdez. Usou uma prótese auditiva, mas esta solução deixou de satisfazer as suas necessidades: ouvia os sons, mas não os conseguia compreender. Uma década depois, descobriu a chave que viria a mudar a sua vida: o implante coclear. 

“Acredito que as coisas não acontecem por acaso”, conta. “Fui ao Hospital Lusíadas Porto para adquirir prescrição médica para compra de um aparelho auditivo e foi nessa consulta que ouvi falar do implante coclear. Só aí tive conhecimento e fui informado dessa possibilidade.”

O que é o implante coclear

O implante coclear é um dispositivo composto por duas partes. A primeira corresponde a uma espécie de “pequeno computador, que tem um elétrodo, que vai ser colocado, através de uma cirurgia, dentro da cóclea [ouvido interno] do paciente que não ouve, para proporcionar o contato direto com o nervo auditivo”, explica António Sousa Vieira, coordenador da Unidade de Otorrinolaringologia do Hospital Lusíadas Porto.

E a outra parte é externa: “Chama-se processador de som, tendo como função captar o som exterior, transformar esse som num impulso elétrico e transmiti-lo através do contacto de íman, via pele, para o implante interno, que foi colocado cirurgicamente.”

O implante coclear capta, então, o som através deste processador, levando-o diretamente ao nervo auditivo, substituindo a cóclea na função de transformar o barulho em impulso elétrico. Permite saltar as etapas que estão a obstruir o caminho, ultrapassando as zonas de constrangimento auditivo do ouvido interno. “Faz um bypass à zona do ouvido que deixou de funcionar, apresentando um estímulo elétrico ao nervo auditivo”, explica o especialista.

Da cirurgia à reabilitação auditiva

O primeiro passo do processo é a realização de uma série de exames minuciosos, que confirmam que o paciente tem indicação para seguir para cirurgia para a colocação do componente interno do implante coclear. Depois da cirurgia, descreve António Sousa Vieira, inicia-se uma “longa maratona”: a da reabilitação auditiva. 

“No dia da cirurgia é colocado apenas o implante que, por si só, não faz nada”, explica Mário Alves, audiologista do Hospital Lusíadas Porto. Ou seja, o paciente não começa automaticamente a ouvir. É só depois do processo pós-operatório, em que são necessárias entre três a quatro semanas para uma correta cicatrização, que se realiza a ativação do processador externo. 

Nesse dia, o paciente vai ouvir, mas não vai perceber. “Vai ouvir sons que não têm significado: sons distorcidos, quase como um rádio mal sintonizado”, explica Mário Alves. Depois, “consulta após consulta, em intervalos de entre uma a três semanas, vamos sintonizando cada vez melhor a programação do implante e aí ele vai começando a ouvir os sons com cada vez mais nitidez e significado.” 

A gradualidade é fundamental neste processo: “O implante faz a estimulação elétrica do nervo auditivo. E esse nível de carga elétrica vai sendo aplicado de forma crescente e gradual”, explica o técnico. “Primeiro, começa-se por um nível de sensação mínima, para que a pessoa consiga detetar que está a haver um nível de estimulação. Gradualmente, este vai sendo aumentado.”

O objetivo é que a programação do aparelho resulte na possibilidade de o paciente “ouvir os sons mais baixos possíveis e os fortes a um nível tolerável”, explica Mário Alves, acrescentando que ”esses valores são ajustados ao longo do tempo”. 

Numa fase inicial, as visitas ao audiologista são mensais, passando depois a ser mais espaçadas: “De mensal passa a dois meses, três meses, semestral e, estando tudo estável, uma revisão anual é suficiente.”

A terapia da fala

Em paralelo, está outro processo a decorrer: o da terapia da fala. É que “a zona auditiva tem de ser novamente reeducada, agora para um novo tipo de estímulo”, explica António Sousa Vieira. 

“Com o treino auditivo, pelo quinto e sexto mês, a pessoa já começa a discriminar palavras. E tem, a partir daí, um crescimento exponencial. Ao fim de um ano, tem uma audição e discriminação que já não tinha há muito tempo.”

Mesmo sem conseguir identificar os sons, o momento da ativação do processador é um momento especial, relata o audiologista. “Seja qual for a idade, é sempre um momento de grande emoção. É como se a pessoa passasse do nada para o tudo.”

“Ouvir tudo o que se passa à minha volta é espetacular“

Viver com surdez severa ou profunda é duro: “A pessoa vai ficando à parte dos sons e das conversas do dia a dia. Está mais isolada em termos de comunicação e socialmente. Isso tem impacto em termos de motivação, estado de espírito. E também impacto em termos cognitivos”, explica o audiologista. “Quando se decide avançar para um processo destes, o impacto emocional é muito grande.”

Fernando Mendes relata isso mesmo. Antes de ter colocado o implante coclear, o auxiliar de ação médica num centro de recuperação de alcoolismo e toxicodependência estava constantemente a pedir aos colegas de trabalho que lhe repetissem as frases. Com a mulher, a mesma coisa. E se um telemóvel tocasse ao seu lado, não o ouvia. “Causava-me muito mal estar”, conta. 

Hoje é diferente. Em todas as dimensões, a sua vida melhorou. “Deu-me a capacidade de ouvir as vozes das pessoas", conta. “Desempenho melhor o meu trabalho, sou melhor profissional.”

Passou a ouvir sons que nunca tinha ouvido: o barulho do sino de uma capela próxima de casa, o ladrar do cão da vizinha. Deparou-se com sons que nem sabia que existiam: “Tirei a carta de condução com pouco mais de 20 anos e nunca tinha ouvido o barulho do pisca de um carro. Nem sabia que existia esse som.”

Passado um ano desde que é capaz de ouvir, continuam a faltar-lhe os adjetivos para relatar o que sente. “Não consigo arranjar palavras no dicionário para descrever a emoção e o sentimento”, diz. “Ouvir tudo o que se passa à minha volta é espetacular. “

Para quem é recomendado o implante coclear? 

O implante coclear deixou de ser recomendado exclusivamente a crianças que nascem surdas, passando já a abranger pessoas de todas as idades, que tenham deixado de ouvir por alguma razão — seja uma infeção, um traumatismo ou surdez súbita. 

Mas há alguns critérios a seguir. “Uma indicação formal é de que todos os doentes, e sobretudo a população com surdez sensorial, tenham perdido a capacidade de beneficiar de um aparelho auditivo.”

Porquê? A forma como a prótese auditiva opera é distinta face ao implante coclear: ela amplifica o som (quase como se fosse um botão que aumenta o volume), mas não tem a capacidade de tornar esse som percetível.  “A prótese auditiva implica que a perceção da palavra esteja minimamente preservada. Se a perceção não está em condições, o aparelho da prótese auditiva vai amplificar ruído e não confere perceção”.

Neste caso, é então recomendado o implante coclear, uma vez que este já permite o tal ganho na perceção. “Todos aqueles doentes que têm indicação para reabilitação auditiva, que já experimentaram uma prótese auditiva, mas que não se adaptaram porque não tiveram ganho ao continuarem sem perceber — ouvem alto, mas não percebem — são candidatos ao implante coclear.”

Por outro lado, o implante coclear não é recomendado para pessoas com muitos anos de surdez severa ou profunda não estimulada, ou seja, em que não tenha sido utilizado um aparelho auditivo. “Se o ouvido não tiver estímulo sonoro, o nervo atrofia e o número de fibras nervosas que conduzem os impulsos começam a ser cada vez menos. Quanto menos fibras estiverem a ser estimuladas, menor a capacidade de recuperação.”

Caso tenha sido utilizada uma prótese auditiva, a história pode ter um desfecho diferente: “Uma pessoa pode até ter surdez profunda há muitos anos, mas ao usar um aparelho tem um ouvido minimamente treinado.”

Cuidados a ter com o implante coclear 

Há alguns cuidados a ter após a colocação do implante coclear: 

  • Impacto na zona em que está colocado o implante (traumatismos, por exemplo) podem ter implicações.
     
  • Por conter um íman, é necessário cuidado com tudo o que contenha campos magnéticos: ressonâncias magnéticas, passagem em sensores do aeroporto ou dos museus, por exemplo.
     
  • O processador externo não pode contactar com a água. No entanto, muitas marcas fornecem já uma espécie de bolsa protetora, que permite levá-lo para dentro de água, mantendo-o protegido. 
     
  • Na prática do desporto, é recomendada a utilização de bandoletes específicas, que asseguram que o processador externo se mantém seguro, junto à cabeça;
     
  • Durante a noite, o processador externo deve ser retirado e a sua bateria recarregada. 
     

Apesar dos cuidados, António Sousa Vieira prevê um “futuro risonho”, marcado pela evolução tecnológica, evidenciada já em alguns modelos, que protegem das situações acima descritas. “É previsível que ainda nesta década surjam implantes completamente implantados. Ou seja, sem processador externo.”

 

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Revisão Científica

Dr. António Sousa Vieira

Dr. António Sousa Vieira

Coordenador da Unidade de Otorrinolaringologia

Hospital Lusíadas Porto
Hospital Lusíadas Amadora
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